O impacto que a falta de água provoca na saúde pública

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*Doron Grull

Posso dizer que a resposta à primeira pergunta é bem simples. Talvez a indagação devesse ser: Por que tiraram mais água do que entrou? Neste caso há duas respostas (não necessariamente nesta ordem): Não mediram as consequências (incompetência gerencial?) e havia uma demanda a suprir e esta parecia a melhor alternativa.
 

Com relação à possibilidade de a crise ter sido prevista, posso afirmar que, estritamente do ponto de vista climatológico ou meteorológico, ainda não existe esta capacidade. Mas o fato de se atravessar um período de maior risco de escassez hidrológica já era de constatação possível, pois a simples observação das condições de “resposta” da bacia hidrológica — em decorrência da baixa pluviosidade média nos últimos períodos — bem como as condições de depleção dos reservatórios, já demandariam precipitações de maior intensidade para o restabelecimento do equilíbrio do sistema, chuvas estas de menor probabilidade de ocorrência, ou seja, havia maior risco de escassez.

Assinalo que o crescimento demográfico da RMSP não foi uma “extraordinária explosão”, cuja conotação é algo imprevisto, mas já era previsto desde os estudos da Hazen & Sawyer de 1965 e confirmado em revisões posteriores e, portanto, de pleno conhecimento dos “planejadores” da Sabesp.

Mas vale lembrar que o sistema Cantareira é um manancial natural da bacia do Piracicaba cujo crescimento demográfico e principalmente crescimento da demanda hídrica devem ser levados em consideração. E aparentemente foram “esquecidos”.

Quanto a outros mananciais a serem utilizados, vários foram estudados, alguns escolhidos e previstos, e poucos executados.

Aliás, um “manancial” estudado foi a redução de perdas. Esta “obra”, no entanto, foi apenas parcialmente executada e depois praticamente abandonada, pois não representava um aumento de receita…

A revista me pergunta: Colocadas as condições que estamos vendo, como essa crise pode ser superada? Gostaria de enfatizar que de fato são três as crises:

Crise de gestão;

Crise de soluções; e

Crise de escassez hídrica propriamente dita.

A superação da primeira, de gestão, implica encontrar o adequado e eficiente equilíbrio entre os vários interesses envolvidos, quais sejam: políticos, econômicos, eleitoreiros, financeiros e empresariais, de forma que os aspectos técnicos, jurídicos e de sustentabilidade sejam devidamente considerados e respeitados. Ao que tudo indica, hoje ocorre o inverso.

Já existe, de fato e de direito, todo o arcabouço institucional e legal para isso, mas a prevalência de um ou outro interesse, e os consequentes conflitos e disputas gerados, não permitem uma gestão eficaz, nem mesmo uma gestão simplória.

É bom observar que a eficiência de um sistema de gestão depende de adequado sistema de informações, envolvendo vários subsistemas de monitoramento quali-quantitativo e de desempenho, e muita transparência.

A segunda, de soluções, não é bem uma crise, mas um desgaste causado por conflitos de interesses, que já vem de longa data, e causado também por uma abordagem incorreta da busca/definição das soluções, pois focaliza obras (novas e grandes), sem a devida consideração de aspectos ambientais, de sustentabilidade, de avanço tecnológico e de ecoeficiência.

Os estudos e planos mais recentes deixaram de considerar a recuperação dos corpos d’água como parte de qualquer solução, e assim deixaram de considerar mananciais e sistemas de regularização como o da represa Billings, por exemplo, que, juntamente com os outros sistemas já implantados na bacia do Alto Tietê, seria capaz de suprir a demanda da RMSP, aliviando, assim, o sistema Cantareira, que teria então disponibilidade segura para as demandas da bacia PCJ, incluindo a região metropolitana de Campinas. Observe-se que esta solução é técnica e economicamente viável.

Outra solução que vem sendo ignorada é a do aumento de capacidade do sistema São Lourenço, de reversão das águas da bacia do Ribeira, já em início de implantação, mas ainda em tempo de revisão.

Obviamente, em paralelo a qualquer solução que venha a ser adotada, deve-se considerar a melhoria/facilitação de “despacho” de água de um subsistema para outro, permitindo uma maior flexibilidade na operação do sistema na RMSP e melhor atendimento aos seus habitantes.

A terceira crise, a de escassez hídrica que estamos sofrendo atualmente, será muito agravada caso o próximo período chuvoso seja de baixa, ou até média pluviosidade.

Assim, será bom que medidas preventivas sejam adotadas de imediato, sem correr este risco. Só há quatro medidas possíveis com efeito a curto prazo:

• Liberação dos contratos de “demanda firme” de todas as indústrias que aderiram a esta forma de negociação com a Sabesp, permitindo a reativação das fontes alternativas anteriormente utilizadas.

• Redução do consumo através de limitação na oferta, quer seja por racionamento propriamente dito, quer seja por reduções programadas na pressão, que não deixa de ser uma forma de racionamento, mas minora a criação de zonas com risco de contaminação na rede. Ambas as formas têm a vantagem de reduzir as perdas nas redes.

Estas medidas, devidamente planejadas, operadas e monitoradas, devem ser transparentes, corretamente informadas à população afetada, juntamente com campanhas intensivas de conscientização, que não devem ser descontinuadas.

• Redução de perdas nas redes com a utilização de tecnologias avançadas de detecção e intensificação das equipes de campo voltadas às detecções e reparos. Certamente é um custo mais elevado do que as concessionárias pretendiam dispender com esta atividade, mas na atual conjuntura, para a sociedade, a água mais cara é aquela que falta, e a concessionária deveria vestir a carapuça e arcar com a redução nos lucros.

• Utilização de pequenas ETAs móveis de tecnologia avançada, colocadas em pontos estratégicos, tanto na bacia do Alto Tietê quanto na do PCJ, aliviando os sistemas produtores de água potável já existentes.

Saúde pública

Um aspecto que deve ser ressaltado é o impacto que a falta de água potável causa na saúde pública. A redução na oferta convencional, via rede, leva as pessoas a buscarem fontes alternativas em bicas, córregos ou caminhões-pipa, todas elas sujeitas a graves riscos de contaminação de poluentes causadores de doenças de veiculação hídrica, várias delas já praticamente erradicadas.

Um surto destas doenças deve ser considerado como iminente pelo poder público, o qual, através dos órgãos competentes, deve estar preparado para lidar com o problema e mitigar seus efeitos adversos ou, pelo menos, aliviar o sofrimento da população afetada.

O nosso sistema de saúde, em qualquer esfera, não está aparelhado para lidar com isso, mas deveria se preparar para não dizer depois que foi um “imprevisto”, tal como a atual seca. Pelo menos os remédios básicos já deveriam ser adquiridos e, à semelhança da escassez hídrica, deveria ser formada uma comissão de crise voltada à questão sanitária.  Mas as eleições estão aí. E quem quer falar de problemas?

*Doron Grull é professor da Faculdade de Saúde Pública da USP

Fonte: Revista O Empreiteiro


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