Na Fenasan, especialistas cobram ações que protejam mananciais, incentivem reúso e modernizem métodos e equipamentos; apenas construir mais reservatórios não basta
Guilherme Azevedo
Eis a síntese da mesa-redonda “Gestão de recursos hídricos, escassez, abastecimento da macrometrópole — quais as alternativas?”, realizada durante o Congresso Nacional de Saneamento e Meio Ambiente (Encontro Técnico AESabesp), dentro da Feira Nacional de Saneamento e Meio Ambiente (Fenasan 2014), em São Paulo.
Água abundante, mas mal distribuída
Primeiro a falar para o auditório lotado, onde havia gente até de pé (o assunto atrai, inquieta), Devanir Garcia dos Santos, gerente de uso sustentável da água e do solo da Agência Nacional de Águas (ANA), recorda a posição de destaque do Brasil em termos de disponibilidade hídrica: detém 12% da água-doce no mundo, isto é, 5,660 mil km3 dos 44 mil km3 existentes. A questão, aqui, é que a água abundante se localiza no Norte, região de baixa densidade populacional, o que significa, como frisou Devanir, que a água não tem distribuição uniforme no País (a bacia Amazônica, sozinha, concentra 4,161 km3). Daí a necessidade de efetivar a gestão compartilhada da água, mediante, de saída, o conhecimento profundo dos recursos existentes.
O gerente da ANA (a ANA é a autarquia federal responsável por implementar e coordenar a gestão compartilhada e integrada dos recursos hídricos e regular o acesso à água) explicou em seguida que, na gestão compartilhada, duas esferas importam: a gestão da oferta e da demanda. “A gestão da oferta é o trato com o solo. E esse é o que mais negligenciamos.” Segundo Devanir, há recursos, na gestão da água, para pessoal, transporte e energia, por exemplo, mas não há para sustentar o volume da água bruta. “Não adianta termos dinheiro, termos as condições de tratamento, se não tivermos água para tratar”, objetivou. Do lado da gestão da demanda, a chave é a racionalização do uso, o que inclui a redução do desperdício e também o avanço do reúso. Há muito o que fazer, lembrou, citando o alto índice de perda da água produzida pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), a maior empresa de saneamento do Brasil: perda real física de 600 milhões l/ano. “Para equilibrarmos as contas de São Paulo, hoje, por exemplo, temos de aproveitar todas as oportunidades de reduzir a demanda e todas as oportunidade de aumentar a oferta [de água]. São essas duas linhas que vão trazer a possibilidade de termos um equilíbrio”, concluiu.
Modernização na agricultura
Devanir também chamou a atenção para a necessidade de racionalização da água destinada à irrigação da agricultura, a começar da escolha do método e do sistema de irrigação apropriados às condições de cada localidade. É bom lembrar que a agricultura utiliza 70% de toda a água-doce disponível (20% vão para a indústria e 10%, para o consumo humano). “Temos amplas possibilidades de reduzir a quantidade [de água] que nós utilizamos hoje na irrigação”, defendeu. O gerente da ANA se mostrou especialmente preocupado com a falta de assistência técnica ao produtor rural, de forma a garantir o correto manuseio e manutenção dos equipamentos e incentivar a inovação tecnológica e a produção sustentável no campo. “Nosso problema é muito sério: não temos assistência técnica. Então como é que queremos que as coisas melhorem?” É para contornar o problema que o governo federal criou, em maio deste ano, a Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater). Ela vai atuar exatamente na formação técnica e na difusão de novas tecnologias e estará presente em todos os estados, com orçamento, para este ano, de pouco mais de R$ 1 bilhão. É um trabalho que está apenas começando e cujos resultados devem aparecer no médio prazo.
A engenheira Roberta Baptista Rodrigues, da consultoria RB Recursos Hídricos, falou em seguida e foi taxativa: construir novos reservatórios pode não resolver a escassez de água na Grande São Paulo, uma vez que problemas de base seguem ignorados (ou quase). Ela apontou a deficiente coleta e tratamento do esgoto (no estado de São Paulo, ainda 40% do esgoto coletado não tem tratamento, conforme o relatório “Águas Superficiais 2013”, produzido pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental, Cetesb), com a consequente poluição de mananciais, e também a ocupação irregular de áreas de proteção ambiental. Alertou ainda para a gestão falha de resíduos sólidos. Isso tudo, obviamente, apontou ela, contribuiu para o quadro crítico da disponibilidade de água na região metropolitana de São Paulo. Daí, a defesa da engenheira pela união das esferas de poder: “Na questão da água, não adianta botar a culpa só no estado. Precisa haver articulação entre os municípios, o estado e o governo federal, gestão integrada entre todos os envolvidos. Isso é de fundamental importância”, cobrou. “Todos nós somos culpados pela falta d’água, essa é a verdade”, assumiu, sugerindo que a população também tem sua parcela de responsabilidade.
Biomonitoramento
Roberta tratou criticamente do aproveitamento do volume morto do sistema Cantareira, recurso emergencial para o abastecimento da Grande São Paulo. O volume morto é aquela camada de água mais profunda dos reservatórios, localizada próxima ao fundo, abaixo do chamado volume útil. O uso intensivo desse recurso, segundo ela, amplia a á
rea de exposição à atmosfera e também, por isso, a taxa de infiltração e de evaporação local. O que pode ser, ao fim, um dano difícil de reverter. Mesmo ressalvando o fato de não ter a posse de laudos, a engenheira colocou em dúvida a qualidade da água do volume morto. Pontuou que se trata de faixa de água em que ocorre o depósito das partículas em suspensão, muitas delas, maléficas ao organismo humano. Por isso, defendeu, é preciso o biomonitoramento dessa água, isto é, o uso de parâmetros biológicos para a avaliação detalhada de sua qualidade.
Roberta encerrou sua apresentação defendendo o “uso de modelos matemáticos e de sistemas que possam oferecer diagnósticos e prognósticos confiáveis” sobre a questão da oferta (e da demanda). Afinal, dados precisos formam a base de um planejamento rigoroso e realista.
Adriana Cuartas, pesquisadora, apresentou ao público os trabalhos do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemadem). É uma entidade, como o nome indica, dedicada à pesquisa de eventos climáticos e à prevenção de desastres naturais. Surgiu em julho de 2011 e hoje monitora diariamente 617 municípios. No caso específico da crise da água, contou Adriana, o Cemadem vem monitorando os impactos do colapso, por exemplo com a instalação de 28 pluviômetros em pontos estratégicos, como o sistema Cantareira. “O objetivo é oferecer informação onde não tem”, explicou. Para a razão da estiagem na Grande São Paulo, ou quanto isso vai ainda durar, ela reconheceu a impossibilidade, pelo menos por ora, de um diagnóstico preciso: “Ainda não sabemos” (ver matéria sobre o fenômeno El Niño nesta edição).
Cantareira no limite (ou além)
O quarto e último debatedor da mesa foi Antonio Carlos Zuffo, professor associado da área de hidrologia e gestão de recursos hídricos da Faculdade de Engenharia Civil da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que fez um histórico da criação e operação do Cantareira. A construção do empreendimento, contou o professor, foi dividida em duas etapas. A primeira teve início em 1967 e foi concluída em 1974, com capacidade de 11 m3/s. O sistema se constituía de quatro represas, estação elevatória e estação de tratamento. A segunda etapa elevou a capacidade de produção de água para 33 m3/s e entrou em operação em 1982, depois de cinco anos de obras. Foram incorporadas, então, as represas Jaguari e Jacareí. O sistema se interliga mediante canais e túneis e abastece regiões da capital paulista e dez municípios da região metropolitana.
Zuffo apresentou em seguida o modelo de operação do sistema, que é feito de forma integrada, considerando a disponibilidade dos reservatórios em conjunto. O volume útil operacional foi ampliado de 765,7 hm3/s para 973,5 hm3/s a partir de 2010, com a redução da área reservada ao volume morto. Em seguida Zuffo mostrou as mudanças sucessivas nas outorgas que regulamentam o volume de água que pode ser desviado para o sistema, para concluir: “Mesmo com o aumento do volume operacional, [o sistema Cantareira] não é capaz de atender à outorga, que é de 36 m3/s de vazão”.
No cenário de estiagem que se anuncia, urge, portanto, buscar água em outro lugar, ou outros lugares, de outra forma. Sim, precisamos de modelos alternativos de produção e uso, com muito reúso na agricultura, na indústria, nas residências, sistemas de captação e aproveitamento da água da chuva inclusive nas casas, mudança de cultura e eficiência. É uma nova pré-condição para todos nós e, quem sabe, até um aprendizado. Be water, my friend, filosofava, com sapiência, Bruce Lee.
Fonte: Revista O Empreiteiro